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ECA - Proteção integral ou controle social?

05/07/2004

ECA - Proteção integral ou controle social?

Entrevista de Sinara Porto Fajardo

A mesma paixão que a assistente social Sinara Porto Fajardo tem pelos seus “guris” – como chama os adolescentes em cumprimento de medida sócio-educativa, especialmente os privados de liberdade –, transparece no seu trabalho junto à Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do RS e no que acabou resultando na tese de doutorado em Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, aprovada com todos os louvores pela Universidade de Zaragoza, na Espanha.

“Recebemos muitas denúncias de violação de direitos dos adolescentes. Comecei a ir a campo e vi que tinha outros problemas por trás das próprias denúncias”, relatou a assistente social, durante a fala intitulada “A realidade dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil”, a convite da Fundação Luterana de Diaconia. Sinara trabalha na Comissão de Direitos Humanos quase o mesmo tempo de existência do Estatuto da Criança e do Adolescente, que completa 14 anos em 2004. Nesta entrevista para a Fundação Luterana, Sinara falou sobre as contradições entre a lei e sua implementação, sobre as quatro lacunas que descobriu, sobre confusões conceituais e sobre o que ela denominou de a lógica do possível.

Fundação Luterana de Diaconia – Como surgiu a idéia da pesquisa?

Sinara Porto Fajardo - Trabalho na Comissão de Direitos Humanos desde 1991. O ECA é de 1990. Ou seja, peguei todo o período de implementação e de reordenamento institucional a partir da lei. Notei que havia uma certa idolatria, a lei era maravilhosa, perfeita, inquestionável. Mas na prática, era diferente. A própria lei dá margem a ambigüidades que, por sua vez, dão margem a lacunas, negligências, abusos, equívocos, diferenças de interpretação. E que isso acabava por vulnerar direitos.
Neste meio tempo, fui convidada para fazer o doutorado e tive a idéia de estudar uma década da implementação do estatuto da criança e adolescente no Rio Grande do Sul. Me interessei mais pelo ato infracional, pelas minhas inquietações como militante e como profissional da comissão.

Fundação Luterana de Diaconia – Como foi realizado o trabalho?

Sinara Porto Fajardo - Fiz a pesquisa em duas dimensões: analisei a lei e o seu conteúdo e o processo de implementação desta lei. Me preocupei em sair da coisa maniqueísta entre a lei e a realidade, mas também fugi de comprar a lei de olhos fechados. Certamente os problemas de conteúdo acabam refletindo na sua implementação.

Para a realização da tese, além de leituras e pesquisa teórica, fui a campo entrevistar 70 sujeitos do que chamo de rede de proteção integral, ou seja, adolescentes privados de liberdade e seus familiares, profissionais, monitores, diretores, conselheiros tutelares, conselheiros de direitos, ongs de atendimento e de defesa dos direitos de crianças e adolescentes, juízes, promotores e procuradores. As entrevistas e grupos de discussão foram feitas nas cidades gaúchas de Porto Alegre, Santa Maria, Santo Ângelo, Uruguaiana, Osório e Santa Cruz do Sul.

Fundação Luterana de Diaconia – Qual o primeiro grande equívoco que apareceu?

Sinara Porto Fajardo - Assim como historicamente houve uma relação entre os modelos de Estado e as políticas públicas para a infância, isso acontece hoje ainda. Ou seja, na nossa Constituição – com reflexo no Estatuto da Criança e do Adolescente – há três modelos de Estado que coexistem por trás: o Estado de Direito, que claro, é explícito; o Estado do Bem Estar; e o Estado do Controle Social. O que eu identifiquei é que, entre essas ênfases, a ênfase do Controle Social é predominante, apesar de o paradigma explícito ser o da proteção integral. O peso que se dá para a reincidência como critério de avaliação dos programas, a documentação sempre registrando os antecedentes e o comportamento, indicam claramente que a ênfase do controle social ainda predomina na implementação desta lei. Mas não é possível julgar a lei por isso, como boa ou ruim. É uma das ambigüidades, são pesos de conceito que fundamentam a prática.

Fundação Luterana de Diaconia – A senhora citou que a rede existe mas que está desarticulada. Poderia falar um pouco mais sobre isso? E também explicar o que definiu como janelas para dentro?

Sinara Porto Fajardo – Sobre as características da rede de proteção integral, resumi o que encontrei na minha pesquisa de campo através da idéia da desarticulação, que chamei de opacidade. Ou seja, um sujeito não enxerga o outro. Imagine um labirinto, todos estão lá mas não vêem os outros, ou não compreendem ou não interagem. O que há são reuniões de alguns dos sujeitos sobre coisas pontuais de sub-articulações em instâncias específicas. Existem tentativas de interlocução e de formar uma rede, mas pelo que ouvi dos sujeitos da rede, elas são insuficientes, As pessoas não estão se achando. Ninguém está satisfeito, de ponta a ponta, neste aspecto.

Para enxergar para dentro deste labirinto, existem três instrumentos que chamei de janelas para dentro e que funcionam precariamente no que se refere à visibilidade interna da rede: são as reuniões pontuais – mas usualmente as deliberações não saem do âmbito dos próprios sujeitos que se reuniram; a documentação, que se restringe a informações sobre os antecedentes do ato infracional e do comportamento do adolescente; e a justiça instantânea, que busca juntar todo o processo de acusação e defesa, determinação de medida e encaminhamento da execução da medida no mesmo espaço físico e temporal – sobre a qual ouvi elogios, mas também várias críticas e insatisfação.

Fundação Luterana de Diaconia – Que tipo de críticas?

Sinara Porto Fajardo – O que descobri na pesquisa de campo – e que me surpreendeu – é que as opiniões sobre a justiça instantânea são polêmicas. Eu tinha informação de que era um ótimo instrumento, mas quando ouvi as pessoas, escutei muitas críticas. A principal delas é que a celeridade pode vulnerar direitos, como o processo da defesa, a apresentação de testemunhas etc. Ou seja, tudo é tão rápido que pode fragilizar o momento da defesa. O argumento para a celeridade como um direito é que protege os adolescentes de um processo muito formal, muito adulto e muito traumático. Mas justamente esse processo poderia ser um exercício de cidadania. E a justiça instantânea subtrai os adolescentes de passar por esta experiência, como uma possibilidade de saber e de experimentar – claro, de uma forma apropriada, não de uma forma adulta – que os atos cometidos contra outras pessoas têm conseqüências. Ainda, estas conseqüências não deveriam ser apresentadas rapidamente, como faz a justiça instantânea, pois são as conseqüências que fazem aprender e enfrentar os atos cometidos. O adolescente poderia aprender, através de uma linguagem apropriada, e sem abusos, claro, que está havendo uma sanção. Esse é um resumo das críticas emitidas sobre a justiça instantânea.

Fundação Luterana de Diaconia – A senhora também têm críticas no que se refere à documentação que circula na rede de proteção?

Sinara Porto Fajardo – A documentação sobre os adolescentes autores de ato infracional se restringe a informar sobre os antecedentes de comportamento e do ato infracional do adolescente. Não há nenhum registro histórico, ou são muito tênues, dos antecedentes de vitimização deste menino. Não há nenhuma documentação sobre os sonhos deste menino, sobre suas aspirações e seu o potencial. O bom não aparece nunca como matéria prima; só se fala do ruim como dado para eliminar, para abafar, para controlar. É deprimente.

Fundação Luterana de Diaconia – A senhora falou em in-justiça juvenil brasileira. Poderia explicar um pouco mais a que se refere?

Sinara Porto Fajardo – Refleti sobre isso quando analisei a trajetória do adolescente pela rede de proteção integral criada pelo ECA. Em primeiro lugar, ficou claro para mim que não é o cometimento do ato infracional que determina a entrada da gurizada nesta rede. Porque a sociedade define alguns atos como bons e outros como maus. Bom, mas está resolvido que ato infracional é aquele que se fosse adulto seria crime. Só que nem tudo o que é crime é penalizado, assim como nem todo ato infracional é penalizado e nem todos os meninos que cometem o mesmo ato infracional são penalizados da mesma forma. Alguns são mais tolerados, outros menos tolerados, há uma seleção geográfica e social na hora em que se decide qual o adolescente vai ser sujeitado a esta rede de justiça juvenil.

Fundação Luterana de Diaconia – Neste momento, também entra a questão da saída. Como funciona esta questão na prática?

Sinara Porto Fajardo – Depois que o adolescente entra, existem várias possibilidades de saída antes de chegar ao final do processo. Isto está determinado no ECA. Desde a autoridade policial que prende o guri, todos têm obrigação estatutária de examinar as possibilidades de liberação. Sempre, em todos os momentos. Só se o episódio é muito grave, ou se não se localiza a família, o adolescente é encaminhado para o Ministério Público, que é o passo seguinte. O Ministério Público também tem a obrigação de examinar possibilidades de saída, o juiz também tem esta obrigação, e de seis em seis meses, na avaliação durante a execução da medida sócio-educativa há esta obrigação de avaliar a possibilidade de sair. Nesta trajetória, cada sujeito responsável nesta trajetória tem uma certa margem de poder de decidir se o guri fica ou sai. Esta margem de poder, determinada por lei, é boa por um lado – pois garante que sempre se está avaliando a possibilidade de liberdade –, mas na prática dá margem a um poder que pode ser excessivo em relação à vida do menino e de sua família.

Fundação Luterana de Diaconia – Outro ponto considerado falho no ECA, na sua pesquisa, é o da indeterminação conceitual das medidas sócio-educativas. Poderia falar um pouco mais sobre isso?

Sinara Porto Fajardo – Verifiquei que existem três pesos conceituais diferentes no que se considera medida sócio-educativa: os pesos variam entre um caráter mais penal, um mais pedagógico e um mais terapêutico. Na prática, esta ambigüidade causa muitos problemas, pois permite abusos, lacunas, negligências, confusões, problemas de implementação. Lembro da minha primeira dúvida, lá em 1991, sobre a questão da medida indeterminada, ou seja, a não definição de cumprimento de um tempo quando o guri entra dá margem a muita insegurança jurídica e ao próprio adolescente. Dá margem à violência individual e coletiva institucional. Este é um problema sério no ECA. Fiz um estudo comparado internacional de medidas sócio-educativas, e vi que outros ordenamentos jurídicos resolveram bem esta questão: dão uma margem indeterminada no geral, mas na determinação firme do caso individual, o guri sabe quanto tempo ele vai ficar. Sou a favor de medidas sócio-educativas pedagógicas garantistas. O adolescente deve ter garantias individuais quando comete um ato infracional. Isto não faz da medida sócio-educativa uma pena. Ainda, analisei a privação de liberdade como o exemplo mais evidente, mais grave, destes problemas. Mas também nas medidas sócio-educativas abertas existem confusão de tempo, de conceito, de ênfase.

Fundação Luterana de Diaconia – A sua pesquisa aponta ainda para quatro lacunas importantes do ECA. Quais são elas?

Sinara Porto Fajardo – As lacunas começam com a defensoria pública. Todos os sujeitos da rede acham que está frágil, menos um, o desembargador, que é a última instância em termos de estado de Rio Grande do Sul que recebe recursos de determinações judiciais a partir do ECA. Como ele está recebendo recursos, acha que a coisa está funcionando bem. Mas não olha para trás, está neste labirinto, não enxerga o resto. A própria defensoria reconhece e se queixa da fragilidade de meios de trabalho, de pessoal, de tempo. Também identifiquei estratégias interessantes de superação ou de negação desta lacuna – uma estratégia é dizer: não é penal, não precisa de defensor. É pedagógico – e aí de novo aparece a confusão conceitual, incidindo na implementação. Outra estratégia é não ver os adolescentes, tratar rapidamente o processo, pois assim pelo menos se está atendendo a todos. Imagina se forem escolher um ou dois ou três casos, daí o resto vai empilhando.

Outra lacuna é a falta de medidas sócio-educativas abertas. O ECA diz que só pode privar de liberdade em último caso, quando o ato infracional é muito grave contra a pessoa ou quando o adolescente reiteradamente deixa de cumprir medidas anteriormente determinadas, as chamadas mais brandas. Nestes dois casos, o ECA prevê privação de liberdade. Só que na prática não tem muito o que fazer. Todos dizem que se houvesse outras alternativas, em uma série de casos se poderia evitar a internação. Claro que aqui também se lida com a questão ideológica: quem é o alvo de internação? São os bodes expiatórios da sociedade, que a sociedade faz questão de manter, de reproduzir e de esconder.

A terceira lacuna é a rede de proteção especial, ou seja, quando os conselhos tutelares recebem denúncias de situações de famílias muito problemáticas, de crianças ou mesmo de adolescentes vitimizadas, não têm como ajudar. Os conselheiros tutelares consideram que se houvesse medidas de proteção para as crianças menores, isso evitaria que chegassem ao ato infracional e à privação da liberdade. No entanto, esta é uma questão polêmica, pois não está provado que a vitimização necessariamente conduz ao ato infracional. O que é verdade é que a grande maioria daqueles que cometem ato infracional têm histórico de vitimização.

A atenção à saúde mental é a quarta lacuna. Todos se queixam que não há locais suficientes para onde encaminhar esta gurizada, afirmando que a maioria têm problemas de saúde mental. Eu não comprovei este dado e portanto não posso assegurar. Mas penso que tem a ver com a representação terapêutica do conteúdo da proteção e da sócio-educação, e da relação que se faz no imaginário entre a questão mental e a questão do ato infracional. Isto tem dado margem a muitíssimo abuso, como medicação psicotrópica excessiva.
Na minha interpretação, a reincidência ou o ato infracional é utilizado como critério para avaliar se os programas estão funcionando ou não. Tanto as medidas abertas quanto as medidas de proteção são reclamadas pelos sujeitos da rede como medidas para evitar a reincidência ou evitar privar de liberdade ou evitar cometimento do ato infracional, e não como medida de proteção da criança e do adolescente ou como medida de oportunidade. De novo, está aquela idéia de que não se enfoca o potencial da criança e do adolescente, e sim as perspectivas negativas e o risco futuro. Mais uma vez, o que está fundamentando o ECA é a noção do controle social e da segurança pública e não a noção da proteção da infância. Eu senti que todos, sem querer, acabam reproduzindo isso.

Fundação Luterana de Diaconia – O que é a lógica do possível e por que ela pode ser negativa?

Sinara Porto Fajardo – Dos diversos problemas e lacunas que observei, todos são associados, nas entrevistas, à questão de recursos financeiros. As pessoas dizem que se houvesse mais dinheiro, equipamento ou pessoal, os problemas seriam resolvidos. Nos discursos, identifiquei um conceito recorrentemente explicitado, que é a palavra conseguir, e através desta palavra defini algo que chamei de Lógica do Possível. Por que não tem outra alternativa e não tem dinheiro, as pessoas da rede ficam contentes quando conseguem alguma coisa. Mesmo que isso signifique conseguir um cursinho qualquer, talvez de serigrafia, no qual os adolescentes podem não ter nenhum interesse e o resultado seja diferente do que se esperava. Ou um curso de informática, quando alguém quer aprender a trabalhar como empacotador em um supermercado – como foi lembrado durante a palestra, ou ser músico, ou qualquer outra coisa.

Fundação Luterana de Diaconia – Uma palavra final?

Sinara Porto Fajardo – Sim, ainda queria dizer que sempre se diz que a Sociologia evidencia o óbvio. Todos sabem que o controle social predomina quando se pensa em políticas para adolescente de ato infracional, todos sabem que a rede está desarticulada, que os programas são paralelos, todos sabem que as políticas públicas são paliativas e não são instrumentos de distribuição de renda. Então, qual a minha contribuição? Penso que sistematizei, de uma forma própria, estas obviedades e contribuí com outros olhares que pudessem ajudar a questionar e colocar estas obviedades em cheque. De qualquer modo, não ofereço nenhuma resposta; o que trago são dúvidas. Mas acho que este é o grande ganho da pesquisa: ajudar a sistematizar as dúvidas e trazê-las para o debate.


Susanne Buchweitz, jornalista
7/2004

Entrevista de Sinara Porto Fajardo
 

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