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ID: 2650

Existência sob a cruz – Somos justos e Pecadores

Confessionalidade Luterana

Existência sob a cruz – Somos justos e Pecadores
Vivemos em uma época na qual somos julgados e justificados pela lei do mercado, da beleza, da saúde, da prosperidade e da utilidade. Pecado é viver no insucesso, na doença, na solidão e no infortúnio. O ser humano, muitas vezes, é visto como um ser descartável. A graça para a sociedade de consumo é estar no topo da pirâmide social. Graça é viver do consumo, ter bens, ser forte e bem-sucedido. Isso pode ser importante para o bem-viver.Quem não quer ser bem-sucedido, saudável, jovem? Essas são dádivas de Deus para que o ser humano viva bem ao longo da sua vida.

Devemos ser gratos por tudo o que recebemos e com o que nos alegramos. Contudo, no contexto de uma visão meramente mercantil, as dádivas se transformam em mercadoria. As pessoas são aceitas pela sua utilidade. Utilitarismo é quando o ser humano é visto sob a ótica da sua utilidade econômica. Precisamos perguntar pelo verdadeiro rosto do ser humano. Lutero, em seu tempo, perguntava pelo verdadeiro rosto de Deus.Onde podemos ver o verdadeiro rosto do amor de Deus? Na pessoa de Jesus. Assim, Deus se apiedou dos miseráveis deste mundo. Jesus era totalmente Deus. Deus se humilhou, se fez gente de carne e osso para estar ao lado daquelas pessoas que sofrem, que são desamparadas e carregam em si as marcas do fracasso humano.

Em Jesus, também vemos quem é o verdadeiro ser humano. Jesus sofre conosco. Ele compartilha dos sofrimentos humanos. Um Deus que se fez fraco nos ajuda na angústia diante da velhice, da doença e do sofrimento. Decorrente disso, o ser humano é reconhecido na sua dignidade. Segundo Lutero, por meio de Jesus, Deus faz uma maravilhosa troca entre Deus e o ser humano. Jesus assume a nossa indignidade para nos dar dignidade. Ele nos absolve da culpa para nos fazer justos. Ele carrega as nossas marcas de sofrimento para nos dar esperança.

Lutero entendia que Deus nos mostra que somos pecadores na totalidade e que Ele também nos mostra que somos justos por causa de Cristo. A fé é dom, é graça. Por meio da fé, aceitamos a graça. Ao sermos justificados, saímos das virtudes de uma vida justa e bem-sucedida para viver somente a partir da graça. As nossas virtudes são fundamentadas nas nossas próprias forças e capacidades intelectuais, morais e religiosas. Entretanto, o nosso sucesso virtuosamente conquistado não dá conta de responder às perguntas angustiantes que o sofrimento e a morte colocam.

A inimizade contra Deus consiste do ser humano querer ser justo pelas suas próprias forças e possibilidades, assumindo a vida nas suas próprias mãos. Na justificação, morre o velho eu, aquele que quer trazer os seus méritos diante de Deus. A fé é morrer para os nossos esquemas de autojustificação e de autodeterminação sobre a nossa vida. Em meio ao sofrimento e à angústia, surgem as perguntas: será que eu sou digno diante de Deus? O que fazer com os meus pecados? O que fazer com a minha dor? O que fazer com os meus conflitos? Deus não nos dispensa das aflições, mas Ele as carrega conosco. Nisso, podemos crer. Entretanto, a fé não é um ´turbinamento´ de forças adicionais do ser humano, somente para suportar as agruras da vida. Fé é dom de Deus que renova o ser humano. Pela fé, morre o velho homem, aquele que se fundamenta nas suas possibilidades e nos seus recursos. Quem vive é Cristo e não mais o eu piedoso, que quer fazer por merecer a graça e os favores de Deus. Por meio de Jesus, somos, ao mesmo tempo, pecadores e justificados. Para Lutero, Jesus assumiu a nossa morte, a nossa culpa e a nossa condenação. Ele nos fez justos. Por meio da fé, o cristão tem certeza de que a sua justiça está em Cristo e, ao mesmo tempo, o cristão sabe da sua natureza pecaminosa.

Segundo Lutero, como consequência da sua fé na justiça de Cristo, o cristão se sabe libertado para fazer aquilo que atende às necessidades do próximo, as boas obras. Desse modo, a fonte da fé e das obras está fora de nós mesmos. A certeza da fé vem da palavra exterior, que nos é dada e é proclamada. Segundo diz o livro de Concórdia: Deus não quer tratar com nós homens de outra maneira senão mediante a sua palavra externa e pelos sacramentos. Lutero passou pela experiência do juízo, do abandono de Deus e pelo sentimento de ser castigado por Deus. Esse também é o drama humano diante da realidade do sofrimento e da morte. ´Tu tens que fazer por merecer a misericórdia de Deus´. ´Tu tens que ser justo´. Entretanto, o ser humano não pode ser justo, porque a sua vontade está totalmente cativa sob o poder do pecado. O poder da lei de Deus exige do ser humano que ele seja justo e, ao mesmo tempo, a lei impede que o ser humano possa buscar a justiça de Deus. O ser humano precisa obedecer à lei na integra. Contudo, ele é prisioneiro do pecado. Além de ser vítima do cativeiro, ele é culpado pelo seu cativeiro. Portanto, para Lutero, não existe nenhuma possibilidade de livre arbítrio. Quem condena o ser humano? É o próprio Deus.

Lutero tinha pânico diante dessa realidade que ele descobriu. A experiência da mão pesada de Deus sobre nossa existência, essa é a mão pesada de Deus, segundo Lutero. O ser humano grita a Deus em seu desespero e pergunta pelopor quê? Nessa realidade de medo, o ser humano é convidado a olhar para a cruz de Cristo. Ao mesmo tempo em que Deus diz que somos culpados, Ele também nos diz que somos absolvidos. A lei é a força do pecado e o pecado é o aguilhão que leva à morte (1Co 15.55-58). Esse é o caminho sem volta. Não há alternativa senão a morte. Lutero enfatiza o juízo da lei de Deus para que Deus não seja domesticado pelos nossos desejos e pelos nossos méritos. Segundo Lutero, não temos livre arbítrio. Se tivéssemos, seríamos Deus, pois o livre arbítrio é característica somente de Deus. Assim como somente Ele é eterno e Todo-poderoso, somente Deus tem o livre arbítrio.

Para Lutero, deixemos Deus ser Deus! Diante disso, a experiência mais fundamental do ser humano não deixa alternativa, senão o desespero ou o mal-estar diante da realidade da culpa. A culpa leva ao vazio de sentido. O pecado se amplia aos relacionamentos perturbados com o próximo, com os familiares e conosco mesmos. As pessoas, hoje, não estão preocupadas, em primeiro lugar, com o inferno ou com o medo diante de um Deus terrível. A justificação do pecador acontece no consumo de coisas, no comprar, na busca por prestígio. Entretanto, o pecado continua, com os seus efeitos de desconforto e de mal-estar com a qual o ser humano não sabe lidar. Outrora, se resolviam conflitos pessoais por meio da confissão e do perdão. Agora, receber e doar perdão são substituídos pela retribuição e satisfação por meio de processos e de indenizações. Essa é a expiação secularizada. A busca desenfreada por cirurgias plásticas e por tratamentos de beleza é a recuperação do rosto que vejo distorcido no espelho da lei. Essa lei é constituída pelas exigências de beleza, que preciso ter para ser amado e aceito por outros e por mim mesmo.

É pela aceitação do mercado que construo a minha justificação. Não estou mais diante de Deus, mas estou sozinho diante de mim mesmo e do juízo dos outros. Perdeu-se Deus como o rosto diante de quem me encontro e sou julgado. Vive-se da opinião dos outros que não usam de graça, mas vivem da lei da beleza, da lei do sucesso material, da lei da juventude. Assim, o pecado passa a ser o insucesso. O pecado é o fracasso. O pecado é a doença. O pecado é a deficiência física. A deficiência mental é o juízo final. O que fazer para sermos ´remidos´ do pecado do insucesso? Quem vai me ajudar? A cristandade não sabe mais bem o que fazer com a realidade do pecado e da graça. Ela, em grande medida, abandonou a confissão de pecados e a palavra de absolvição. Terceirizou-se essa tarefa para a mão da Psicologia ou terceirizaram-se o pecado e o mal para os demônios, como acontece em algumas Igrejas.

Lutero insistia em dizer que Jesus Cristo é o rosto de Deus. Falar em graça é falar na obra de Cristo. O ser pecaminoso é agraciado incondicionalmente. Deus nos carrega nos seus braços, apesar e em meio às nossas imperfeições e aos nossos insucessos. Deus nos abraça na cruz de Cristo. O perdão sempre é incondicional, porque recebemos perdão incondicionalmente. Assim, trilhamos a vida cristã sendo justos e pecadores, por causa de Cristo.

Prof. Dr. Euler Renato Westphal
(Professor de Bioética na Universidade da Região de Joinville/SC (Univille), Professor na Faculdade Luterana de Teologia (FLT), em São Bento do Sul/SC, é autor das seguintes obras ‘O Oitavo dia na era da seleção artificial’ e ‘Brincando no paraíso perdido: as estruturas religiosas da ciência’ (Editora União Cristã), além de ‘Para entender Bioética’ e ‘Ciência e Bioética: um olhar teológico’ (Editora Sinodal) - texto original revisto pelo próprio autor ‘Para entender Bioética’ (2006))
Fonte: Jornal Evangélico Luterano, 2012 agosto
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