Um culto especial na BR 364

01/12/2013

Muitas lembranças dos serviços da missão da equipe de Ariquemes nas Novas Áreas de Colonização se gravaram para sempre na minha memória. Quero com- partilhar com os leitores e leitoras a memória de um culto bem especial que aconteceu no Km 42 da BR 364, que liga Porto Velho/RO a Rio Branco/AC.

A equipe de Ariquemes atendia na época as comunidades de Porto Velho, Rio Branco, Humaitá, Boca do Acre, Manaus, Boa Vista e comunidades em Roraima. Estes atendimentos aconteciam, normalmente, duas vezes ao ano. Nas casas em Porto Velho e na BR 364 os atendimen- tos os membros luteranos aconteciam com mais frequência.

No km 42 da BR 364 em direção a Rio Branco, morava um casal numa casa especial, feita à La Amazônia, ou seja, coberta com palmas de babaçu: Georg Rempt, um alemão, e sua esposa dona Rosa, uma austríaca.

Georg Rempt era engenheiro florestal, formado na Alemanha e especializado em madeiras tropicais. O casal, na época das nossas visitas nos anos 80, já morava ali há vinte anos. Ele chegou da Alemanha depois da guerra. Foi para Porto Velho para ajudar o exército brasileiro, o 5º BEC, a construir as pontes entre Porto Velho e Rio Branco. Muitas vezes foi solicitado para identificar madeiras nobres da Amazônia.

No seu sítio de 5.000 hectares tinha uma casa bem simples. Mas mantinha a mata intacta, bem preservada, com trilhas. Georg Rempt amava a natureza e plantava árvores de todas as espécies e tinha lugares para observar os animais. Contava, ainda maravilhado, sobre o seu primeiro encontro com uma onça, sozinho e em plena selva! Dizia que ele lhe ordenou com autoridade: “Desapareça da minha frente”. Para a sua felicidade, ela obedeceu à sua ordem militar.

O senhor Georg foi pioneiro na ecologia e procurava preservar a natureza. Plantava mudas de castanheiras do Pará, e outras espécies mais. Seu sonho era ter uma escola para os jovens luteranos, para lhes passar seus conhecimentos das madeiras amazônicas e pôr em prática o uso sustentável das mesmas. Enquanto isso a maioria só pensava em lucros e em devastar as selvas, tornando nuas as ter- ras de matas, e em transformá-las em fazendas.

Georg tinha problema com a bebida. Costumava nos dizer em alemão: “Bebam! Isso é uma ordem militar” (Trinken Sie! Es ist ein militärischer Befehl). Mas, nós sempre fomos bem recebidos na sua barraca à beira da BR 364. Ele mesmo cozinhava para nós, na ausência de dona Rosa. Muitas vezes também foi nos visitar em Ariquemes.

Num belo domingo, no ano de 1982, íamos celebrar um culto na sua propriedade. Todos os vizinhos foram convidados e também outros membros, residentes em Porto Velho. Quando lá chegamos, ainda nada havia sido preparado para o culto. Jorge e sua mulher Rosa partiram mata adentro e nós ficamos cantando e conversando, e aguardando o que iria acontecer. O tempo passou. O casal voltou com duas pranchas de madeira já tratadas. Entrementes já eram 11 horas. As duas pranchas estavam aguar- dando no chão. Faltava só furá-las com uma broca e parafusá-las no seu meio em forma de cruz. Feito isto, Dona Rosa montou no trator, a cruz foi amarrada na pá do mesmo, e ela foi erguida.

Então Jorge passou a providenciar um altar. Era um toco de árvore em forma de forquilha, que estava um pouco oco. Quando o levantamos, saíram do oco muitas formigas, que tivemos que combater. Tínhamos vontade de rir tal a comicidade da ação. Então seu Jorge instalou uma tábua entre a forquilha, e eis nosso altar. Parecia a primeira missa no Brasil, celebrada por frei Henrique de Coimbra, na selva brasileira. Tudo foi improvisado para o momento da celebração.
Íamos iniciar o culto, quando o seu Jorge disse: “Esperem mais um pouco!” Ele pegou duas bandeiras, uma do Brasil e outra da Alemanha. E, ao som de uma marcha e do badalar de sinos, que saíram de uma velha vitrola, as bandeiras foram hasteadas no portão de entrada do sítio, num ritmo lento e solene. O tempo passou e já estava perto de meio dia. Muita gente com o estômago já roncando de fome.

Dona Rosa acendeu as velas no altar, enquanto eu falava: “Vamos cantar um hino. Hoje vimos como seu Jorge e dona Rosa ergueram a cruz de Cristo na selva

amazônica. Jesus está no meio de nós nesta vida de sofrimento, de malária, mas na esperança de uma vida melhor. A prédica já aconteceu! Vocês observaram por tanto tempo como a cruz foi levantada com tanto carinho. Eu não preciso dizer mais nada. Vamos orar o Pai Nosso e depois receber a paz deste Cristo crucificado e ressuscitado em prol da nossa vida.” Cantamos mais um hino acompanhado pelo violão de Sigmar Heumann.

Todo mundo havia trazido muita comi- da que foi repartida. Ficamos juntos até à tarde, conversando e cantando. Tudo terminou com a canção de Sigmar Heumann: “Pelo deserto passou Moisés”. Foi um culto memorável, celebrado em plena selva amazônica.

Quando seu Jorge morreu, sua esposa Dona Rosa vendeu as terras, cheias de árvores intocadas e plantadas, e voltou para a Áustria. Deles só restou a saudosa lembrança. Eu queria visitá-la, mas os parentes me disseram que ela já havia falecido, tão logo voltou do Brasil.

Hoje, quem passa pelo quilômetro 42 viajando para Rio Branco, não vê ali mais nenhuma árvore. Somente pasto. E, adeus ao pensamento ecológico do casal Rempt.


O autor é Pastor aposentado, que atuou muitos anos nas Novas Áreas e na Missão Indígena na Amazônia. Hoje reside em Manaus/AM


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Autor(a): Walter Sass
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Anuário Evangélico - 2014 / Editora: Editora Otto Kuhr / Ano: 2013
Natureza do Texto: Artigo
ID: 34383
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