Espiritualidade

01/12/2014

Espiritualidade

P. Dr. Lothar Carlos Hoch

Na América Latina a teologia de matiz protestante é considerada sólida, sendo respeitada no debate com outras igrejas e com outros saberes. Não obstante, permanece incerto se, para além do respeito acadêmico, nossa teologia e a nossa pastoral se constituem efetivamente em fonte de alimento e sustento na crise. A teologia é posta à prova como verdade que sustenta o povo de Deus, justamente diante da experiência do sofrimento, da cruz e do silêncio de Deus.

Temo que na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil estamos deixando de atingir um maior contingente de pessoas porque falta à nossa teologia o caráter de ser alimento e sustento na crise e na fraqueza.

A teologia, pela sua própria natureza de ser instrumento do Evangelho de Jesus Cristo, precisa estar visceralmente comprometida com a preocupação de ajudar as pessoas a vivenciarem a graça e o consolo. A verdade da teologia ensinada precisa se tornar carne, experiência do Evangelho encarnado. É necessário que a perspectiva acadêmica e a espiritual se aproximem e se complementem.

Nossa forma de exercer o ministério é marcada por uma prática discursiva que tem como palco o púlpito e a cátedra (pregação e ensino). O contingente de pessoas que atingimos com essa ênfase unilateral na dimensão acadêmica da teologia torna-se limitado. A grande maioria do povo latino-americano tem sede da palavra encarnada, da ação solidária que traz consolo e esperança na doença, na morte, no luto, na depressão, na velhice, no desemprego. A evasão de membros que se observa entre as igrejas históricas e a sua crônica fraqueza missionária têm como uma de suas causas a incapacidade de fazermos de nossa “boa” teologia uma fonte de amparo na crise e na dor do nosso povo. Ora, uma teologia que não é alimento para a fé e não é sustento para os fiéis torna-se estéril. “Um manto que não te dá calor já não é mais um manto”, diz a sabedoria indígena.

O falecido pastor e professor Milton Schwantes chamava atenção para o fato de que, de modo crescente, as pessoas se nutrem de experiências cristãs em diferentes igrejas. Ele cita o exemplo de Lucineide, uma mulher que gosta de participar de estudos bíblicos no meio luterano. “Mas ela também gosta de ir aos templos de Edir Macedo e ter a experiência do êxtase. Ela sente que, sem ir neste culto, ela não consegue superar as suas dificuldades”.

Quando Lucineide frequenta os estudos bíblicos na IECLB, ela quer saber mais sobre a fé, ela é movida pela fé que busca compreender o que ela crê. E, quando frequenta o culto pentecostal, ela busca a experiência da cura pela fé. Lucineide está, de um lado, denunciando a estreiteza teológica e a pobreza da pastoral do protestantismo histórico que acentua unilateralmente a razão e, de outro lado, a superficialidade teológica do neopentecostalíssimo que se julga capaz da mediar de forma imediata a experiência do sagrado.

Em um seminário de Clínica Pastoral que ministro na Faculdades EST, em São Leopoldo, costumo acompanhar os estudantes a fazerem visitas em hospitais ou em outras instituições que abrigam pessoas que sofrem. E peço que eles escrevam relatórios das visitas que os impactam mais fortemente. Outro dia, um estudante compartilhou no nosso grupo que ele visitou um homem e, ao aproximar-se do leito, perguntou como estava passando. Sua esposa interveio e disse: “Os nossos dias neste hospital têm sido horríveis. Parece ser um local esquecido por Deus. Quem passa pela rua, do lado de fora, não imagina o que se passa aqui dentro”!

Este fato expressa duas facetas importantes que merecem ser destacadas. 

Primeira faceta: esta mulher expressou o que inúmeras pessoas experimentam na hora da doença, da morte de um ente querido, do luto, da separação conjugal, da depressão, a saber, o abandono por parte de Deus. E, eis que chega um representante da Igreja, e a mulher dispara: “Assim como Deus está longe, também vocês da Igreja estão longe dos hospitais e não podem imaginar o que a gente passa aqui dentro”. De fato, as nossas igrejas costumam se dedicar mais aos assim chamados “membros fiéis” que participam dos cultos e dos grupos organizados. Desse modo, as igrejas mantêm o foco da sua atenção pastoral centralizado no templo, enquanto os membros mais afastados ficam em segundo plano. Por isso, a visita pastoral na hora da crise, justamente quando se experimenta a ausência de Deus, é uma das mais importantes tarefas pastorais nos dias atuais. Estou convencido de que as igrejas históricas estão perdendo membros para outras igrejas, justamente porque estão deixando a sós os seus fiéis na hora da dor e da crise. Precisamos desenvolver uma concepção pastoral mais dinâmica, que não espera as pessoas no templo e na casa pastoral, mas que vai em busca delas ali onde elas se encontram.

A segunda faceta que eu gostaria de destacar a partir da visita ao hospital acima mencionada, é que a doença e o sofrimento levantam dúvidas e questionamentos relacionados com diferentes áreas da vida. No leito da enfermidade as pessoas são obrigadas a parar, têm tempo para refletir e se confrontar consigo mesmas e com a sua fragilidade humana. Isso pode suscitar o protesto contra Deus, mas pode igualmente levar a pessoa à autocrítica, a fazer um balanço da sua vida e a se dar conta de que não cuidou suficientemente da sua saúde e que negligenciou a sua vida familiar. Pode também levar à conclusão de que precisa dar mais atenção à espiritualidade e a cultivo da sua relação com Deus. Em todo caso, o sofrimento quase sempre representa um desafio para a fé e levanta questões centrais relacionadas com a espiritualidade. Portanto se diante de tal situação, deixarmos de lado a espiritualidade, estaremos omitindo a própria natureza específica da nossa atuação pastoral.

Na Capela da Escola Superior de Teologia, em São Leopoldo, atrás da mesa eucarística, há um singelo quadro que apresenta duas pessoas. Uma que acolhe a outra com um braço envolto em torno da mesma e o outro braço apontando para uma singela cruz que se encontra atrás do altar. O que eu vejo neste quadro é o seguinte: mesmo que seja importante que eu saiba acolher e ouvir uma pessoa em seu sofrimento, jamais devo entender-me como sendo o sujeito da cura ou da solução do seu problema. Cabe-me apontar para além de mim mesmo, para Cristo, o bom Pastor!

O sofrimento e a doença suscitam, quase que naturalmente, questões existenciais como, por exemplo, a pergunta por que Deus permite que as pessoas tenham que sofrer. A doença também pode vir associada à pergunta pela culpa, ou seja, em que medida eu mesmo sou responsável pelo sofrimento que estou passando. Estou convencido de que se soubermos ouvir atentamente o que está no coração das pessoas com quem falamos, não precisaremos introduzir artificialmente as questões relativas à espiritualidade. Elas estão  latentes na grande maioria das situações de sofrimento e de conflito com as quais lidamos, seja no exercício do pastorado, seja no diálogo com nossos amigos mais próximos.

Por isso é bom que, no seio da própria Igreja, se esteja redescobrindo o “lugar do sagrado na terapia”. Esta convicção está expressa no título do livro de Carlos José Hernandes, em cujo prefácio se afirma que a fé ilumina a prática psiquiátrica, pois “o paciente não só procura ser curado como também (ser) salvo”. Ou seja, tratar de questões de fé e de espiritualidade, têm tudo a ver com a própria natureza do ser humano, tanto na sua fraqueza e perversidade, quanto na grandeza dos seus ideais e no seu profundo anseio por plenitude e paz. 

Considero significativo o fato do Psicanalista Carl Gustav Jung, na maturidade da sua vida, ter observado que “dentre todos os meus pacientes na segunda metade da sua vida não há um só, cujo problema, em última análise, não fosse o de encontrar uma perspectiva religiosa da vida”.

Por isso sou de opinião que nem a Psicologia e tampouco a Teologia são profundas, enquanto deixarem de considerar que o ser humano é, por natureza, um ser religioso, do qual Santo Agostinho diz: “... tu Senhor, nos criaste para ti e nosso coração está inquieto até que descanse em ti”.


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Autor(a): Lothar C. Hoch
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Anuário Evangélico - 2015 / Editora: Editora Otto Kuhr / Ano: 2014
Natureza do Texto: Artigo
ID: 35029
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É mais consolador ter Deus como amigo do que a amizade do mundo inteiro.
Martim Lutero
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