Deuteronômio 30.9-14 - Lucas 10.25-37 - Colossenses 1.1-14

Prédica

10/07/2016

Deuteronômio 30.9-14 – Evangelho: Lucas 10.25-37 – Epístola: Colossenses 1.1-14

Prezada comunidade luterana aqui de Belo Horizonte:

Um cordial bom dia! Deixem-me começar parafraseando o apóstolo Paulo, conforme a leitura da carta aos Colossenses:

“Nilton, ministro de Cristo Jesus, por vontade de Deus nesta Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, e o irmão Roberto, professor na Faculdades EST – Escola Superior de Teologia, também por vocação de Cristo Jesus, aos irmãos e irmãs em Cristo que se encontram aqui em Belo Horizonte: Graça e paz a vocês da parte de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo, na unidade do Espírito Santo”.

Gostaria de começar esta reflexão apontando para uma questão que é importante quando lemos a Bíblia. Há pessoas que, ao se interessarem por ler a bíblia, o fazem com toda a boa vontade, mas talvez de um modo não muito eficaz, por exemplo, lendo da primeira até a última página. Fica difícil assim entender o seu conteúdo, a sua mensagem maior. Por isto a gente precisa se apropriar do que os especialistas chamam de chaves de leitura. No Antigo Testamente existem várias. Destaco as seguintes: a) Êxodo 3, onde lemos que Javé é um Deus que ouve o clamor de gente escrava dos poderosos no Egito e vai ao seu encontro para libertá-los dessa escravidão; b) Esta experiência histórica de salvação aparece no Credo do povo de Israel, no famoso texto de Deuteronômio 6, que começa assim: “Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a tua alma, e de toda a tua força [...]”. Vê-se que o amor a Deus é resposta à ação de Deus que libertou o seu povo, na verdade, fazendo de um miserável grupo de escravos um povo. Este texto se completa, como lemos na narrativa de Lucas, com o texto de Levíticos 19.18: “Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo: mas amarás o teu próximo como a ti mesmo: Eu sou o Senhor”. Esta chave de leitura precisa ser lida no preâmbulo dos Dez Mandamentos, caso contrário, podemos mal entendê-los como se fossem leis de um Deus Mandão, quando é justamente o contrário (cf. Êxodo 20.1s.); c) Isaías 9, onde lemos que o Messias será um menino frágil nascido de uma jovem camponesa, e este será o Príncipe da Paz, texto que se completa com Isaías 52/53 onde encontramos os cânticos do Servo sofredor, sempre lembrados quando procuramos compreender os gritos de Jesus na Cruz. Aliás, a este texto se liga o canto do Salmo 22: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”, que os evangelistas colocam na boca de Jesus ao ser crucificado. Lendo muitas vezes os textos da paixão me convenci de que Jesus certamente cantou todo o Salmo na sua agonia, e nele encontramos justamente a confiança que prevalece naquele que sofre injustamente, ainda que no abandono mais radical.

Pois, o texto de hoje, Deuteronômio 30.9ss, se coloca nesse conjunto de textos que chamo de chaves de leitura para compreender a mensagem libertadora da bíblia. Vejam que o v. 14 diz algo surpreendente: o mandamento ou a palavra de Deus está bem perto de nós, na boca e no coração. E é assim que somos chamados a cumpri-la em nossa vida. Ela não está nos céus (v. 12) nem nas terras distantes do outro lado do mar (v.13), muito pelo contrário, “não está longe de ti”. Por isso não é difícil de cumprir o que ela anuncia, pede, suplica de nós. A palavra de Deus tem a ver com o nosso coração, com a nossa alma! E enquanto não atingir a profundidade do nosso ser, provavelmente não a compreenderemos nem saberemos andar nela, como escreveu o apóstolo Paulo.

Na narrativa de Lucas 10.25ss, o intérprete da lei, uma espécie de teólogo da época, quis pôr Jesus à prova e perguntou: “Mestre, que farei para herdar a vida eterna?” Jesus retornou a pergunta: “Que está escrito na lei? Como interpretas?” O homem respondeu corretamente (foi nota 10!) afirmando justamente aqueles textos chaves para entender o AT: mencionou Deuteronômio 6 e Levíticos 19, o amor a Deus de todo o coração e de toda alma, e o amor ao próximo. Ele conhecia bem as Escrituras, como se vê. Jesus, então, conclui: “Faze isto e viverás”. Vejam que Jesus não voltou ao tema da vida eterna, mas apontou para a vida aqui mesmo! O teólogo não se deu por satisfeito e perguntou: “Quem é o meu próximo?”. Jesus, respeitosamente acolhe a pergunta, mas responde contando uma história, a conhecida parábola do homem caído na beira da estrada, roubado e ferido por malfeitores a ponta de quase morrer. Conta que um sacerdote descia por aquele caminho, viu o homem, mas passou de largo. O mesmo aconteceu com um levita, um conhecedor da lei de Deus, que também viu a cena, mas passou longe. Somente um samaritano, de um povo com quem os judeus não se entendiam e até odiavam, viu o homem, compadeceu-se dele, cuidou dele e o resgatou, deixando-o numa hospedaria para se curar, assumindo até mesmo as despesas desse ato. Jesus perguntou ao teólogo: “Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos bandidos?” Novamente o estudioso respondeu corretamente: “O que usou de misericórdia para com ele”. Então Jesus lhe disse: “Vai e procede tu de igual modo” (v.37).

A questão do amor a Deus não se resume a sentimentos bonitos e cantos de louvor. Isto seria quase uma heresia no contexto do evangelho. Amar a Deus, isto é, cumprir com os mandamentos de Deus, diz respeito a amar as pessoas, tornar-se próximo delas, ajudar a devolver-lhes a vida, a dignidade, a liberdade para serem gente. Deus não nos chama para vivermos nossa fé de maneira privada, escondida, restrita aos familiares e amigos, amigas. Claro que também com estas pessoas queridas vivemos o amor de Deus. Mas ele se manifesta, de forma mais contundente e radical, no amor aos que não nos parecem dignos de receber nosso amor, nossa mão estendida, nosso coração. Jesus radicalizou este amor quando falou aos discípulos e discípulas: “Ouviram o que foi dito: amarás o teu próximo. E odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo a vocês: Amem os seus inimigos e orem pelos que perseguem vocês para que vocês se tornem filhos do seu Pai celeste” (Mateus 5.43ss).

Amar a Deus, seguir os seus mandamentos supõe, assim, uma conversão do coração. O amor não pode ser imposto a ninguém, pois vem lá de dentro da pessoa, do coração, da alma e acaba por envolver toda a mente, o entendimento, a razão. É por isto que alguns autores contemporâneos falam de razão amorosa ou compassiva. Ocorre que só Deus mesmo consegue entrar lá dentro, mexer conosco no mais íntimo de nós. A consequência, qual é? Ah, sim, nós nos tornaremos pessoas abençoadas. Vejam que o v. 9 afirma que Deus dará abundância para aquelas pessoas que guardarem os seus mandamentos, a sua palavra. Esta abundância se manifesta com a presença de filhos, filhas, com o fruto do trabalho em animais e boas colheitas. Esta é abundância de que fala o texto bíblico: comunhão na casa, na família, que poderia incluir também filhos e filhas adotados ou gente amiga que compartilha nossa mesa; mas também o resultado do trabalho e do esforço de cada pessoa no seu afã diário. Permitam-me, porém, um acréscimo. Tal abundância prometida por Deus a quem nele crê e que aprende a amá-lo de todo o coração e de toda a alma não quer dizer riquezas, carro novo todo o ano, apartamentos de cobertura ou qualquer outra forma de ostentação. Há muitos pregadores que se valem desses sucessos para dar provas de como “Deus lhes abençoa”. Eu entendo que isto é falso! E tenho minhas dúvidas se tais pregadores ou pregadoras compreenderam de que “abundância” ou “prosperidade” nos falam os textos bíblicos.

Por fim, cabe lembrar que o amor ao próximo inverte a questão apresentada pelo teólogo a Jesus. Jesus não respondeu sobre quem é o próximo. Ele desafiou o teólogo esperto a tornar-se próximo de quem sofre, de quem precisa de ajuda e companhia, de cuidado e libertação. No profeta Zacarias 7.9s encontramos uma descrição que se tornou outra chave de leitura para compreender o que significa “amar a Deus” e que retoma a experiência fundante dos povo hebreu, o povo de Jesus: “Executem juízo verdadeiro, mostrem bondade e misericórdia cada um a seu irmão; não oprimam a viúva, nem o órfão, num o estrangeiro, nem o pobre, nem intente cada qual em seu coração o mal contra o seu próximo”. Este ensinamento está ligado à formação de Israel como povo. Porque ele viveu a escravidão e a opressão no estrangeiro, por isto deve amar aos que sofrem o mesmo que sofreu no passado. Ora, se isto é verdade, o Estado de Israel dos nosso dias precisa urgentemente mudar sua política de ocupação das terras palestinas e respeitar a dignidade daquele povo. Poderíamos atualizar dizendo que nesta lista devemos incluir os migrantes que chegam ao Brasil, como haitianos, senegaleses, nigerianos, palestinos, sírios, indianos, e todas as pessoas sofredoras, pobres, que vivem na marginalidade, no desprezo, na invisibilidade, incluídas aí de modo especial as crianças, jovens negros, mulheres que sofrem violência doméstica, pessoas com deficiência, povos indígenas, pessoas idosas, pessoas perseguidas por sua vivência da sexualidade, e tantas outras.

É no amor a essas pessoas que se decide se somos discípulos e discípulas de Jesus, se somos filhos e filhas do Deus vivo, se o amamos de coração, com toda a alma, com todas as forças e todo o entendimento. É algo do coração, do mais profundo do nosso ser. Seguir simplesmente normas, lei ou regras de bem viver está correto, mas não é suficiente. Jesus nos chama para andar com ele adiante, seguir com ele ao lado das pessoas que mais sofrem, isto é, “andar a segunda milha” (Mateus 5.41), fazer o “extraordinário” (Dietrich Bonhoeffer). Vivendo assim, pensou eu, até poderemos passar por privações, sofrimentos, angústias, mas seremos abençoados por Deus, viveremos na comunhão com ele e com as pessoas que nos abraçam aqui ou nos caminhos obscuros da vida, como quando visitamos as crianças do CIM ou da creche Cantinho do amigo.

Para terminar, permitam-me ler um poema em forma de salmo que escrevi faz alguns anos e que se integra nesta véspera dos 500 anos da celebração da Reforma de 1517:

Salmo de um protestante

Pai nosso,
somos filhos e filhas da Reforma
mas andamos desgarrados, ausentes,
descompromissados, desiludidos até.
Onde ficou o espírito protestante do movimento?
Perdeu-se na mesmice do tempo
ou se ocultou preventivamente?

Que evangelho é este que anunciamos?
Consolo barato ou desafio permanente?
Protesta contra nós, Senhor da Vida,
quem sabe alguém te escute,
e o espírito primeiro desate
o nó que asfixia a minha veia.

Perdão, Senhor,
pela arrogância dos iluminados,
pela certeza dos piedosos,.
pela leviandade dos despreocupados,
pela ciosa cautela dos fartos.

Ajuda-nos a buscar o Evangelho
da graça e da vida solidária.
Isso não é pouca coisa.
E ajuda-nos a viver com os olhos postos
no horizonte do Reino da justiça
e do amor.
Tem piedade de nós, Senhor!

Amém!

Roberto E. Zwetsch
 


Autor(a): Roberto Ervino Zwetsch
Âmbito: IECLB / Sinodo: Sudeste / Paróquia: Belo Horizonte (MG)
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Prédicas e Meditações
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 8º Domingo após Pentecostes
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 38624
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É por meio de Cristo que somos aceitos por Deus, nos tornamos o povo de Deus e somos salvos.
1Coríntios 1.30b
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